Entrevista a Vítor Manuel Gonçalves Gomes, Presidente do Supremo Tribunal Administrativo
“Ser Presidente do Supremo Tribunal Administrativo (…) é uma honra e, em si mesmo, um desafio estimulante.”
Vítor Manuel Gonçalves Gomes
Juiz Conselheiro e Presidente do Supremo Tribunal Administrativo
Junto à entrada do supremo tribunal administrativo, o olhar divide-se. Ora se avistam as escadas que conduzem os passos de quem entra neste edifício que dá morada à justiça, ora se vê Lisboa que, com a sua luz e as suas cores, enche a vista de quem passa pelo miradouro de São Pedro de Alcântara. A vida vai acontecendo nos dois lados da rua. O tempo não para, o mundo também não. E a Justiça, como parte de tudo isto, é depósito dos anseios de quem não tem tempo, só pressa.
Numa conversa com Vítor Manuel Gonçalves Gomes, Juiz Conselheiro e Presidente do Supremo Tribunal Administrativo, ficam a conhecer-se os desafios que revestem o cargo e os tempos. Da justiça e do mundo.
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Como conseguiremos explicar o papel do Supremo Tribunal Administrativo ao cidadão? Em que casos é que se deverá recorrer a um Tribunal Administrativo e Fiscal? Aliás, considera que as fronteiras de competências entre tribunais estão suficientemente definidas? E em que medida é que se justificam as diferenças no regime dos tribunais administrativos face aos cíveis?
O Supremo Tribunal Administrativo (STA) é o órgão de cúpula da hierarquia dos tribunais administrativos e fiscais. Com jurisdição sobre todo o território nacional, as suas competências estão elencadas nos artigos 24.º e 26.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF). Algumas como tribunal de primeira instância, respeitando a ações ou omissões em matéria administrativa de órgãos superiores do Estado, designadamente do Conselho de Ministros, do Primeiro- Ministro e dos órgãos de gestão das magistraturas do Ministério Público e dos juízes da própria ordem jurisdicional. E outras em via de recurso de decisões proferidas pelos tribunais administrativos e fiscais ou pelos tribunais centrais administrativos. São estas as de maior expressão quantitativa no trabalho do Tribunal.
O recurso aos tribunais administrativos e fiscais impõe-se sempre que seja necessária a resolução de um litígio no âmbito de uma relação jurídica administrativa ou fiscal, sendo o sistema processual gizado para a plenitude de tutela jurisdicional nesse domínio, com amplos poderes de pronúncia por parte do tribunal, designadamente a condenação da Administração à prática do ato devido, sempre com respeito pela margem de conformação administrativa.
A existência de uma jurisdição autónoma para apreciação dos litígios em matéria administrativa e fiscal corresponde a uma opção com larga tradição entre nós, que foi consagrada na Constituição e tem paralelo na organização do poder judicial da maior parte dos países da Europa continental. Além da especial complexidade, diversidade e constante mutação da legislação implicada, a exigir a existência de juízes especializados, acresce que o exercício de poderes de autoridade pública e a articulação entre interesse público e interesse privado subjacentes a muitos dos litígios apreciados nos tribunais administrativos constituem elementos distintivos face ao comum dos litígios submetidos aos tribunais comuns, com repercussões na tramitação processual, nos moldes da decisão judicial, e na respetiva execução, a exigir uma metódica própria.
As fronteiras entre a jurisdição comum e a jurisdição administrativa estão definidas na lei com razoável clareza. Claro que é inerente à dualidade de jurisdições que surjam divergências quanto ao tribunal competente. Estas divergências são, em último termo, dirimidas pelo Tribunal dos Conflitos, órgão de composição mista, com juízes do Supremo Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Administrativo.
Considera que a Justiça está, atualmente, mais credibilizada, próxima e acessível ao cidadão, nomeadamente no que respeita aos custos e procedimentos?
O propósito da reforma desta jurisdição iniciada em 2002, recentemente reforçada pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro, foi o de proporcionar aos cidadãos e às empresas uma “justiça de qualidade”, uma justiça que, além da independência e imparcialidade dos juízes, que nunca esteve em causa, fosse mais eficiente no que respeita à extensão da tutela jurisdicional, aos poderes dos tribunais, à execução das sentenças e à prontidão da decisão. Melhorou-se a proximidade e acessibilidade com o alargamento do número e a distribuição territorial dos TAF e a disponibilização ao cidadão e aos diversos operadores judiciários de informação sobre os dados processuais relevantes, alargando-se as funcionalidades do Sistema Informático dos Tribunais Administrativos e Fiscais (SITAF) procurando dar resposta às necessidades reais dos cidadãos e reforçar, em termos gerais, a confiança do público no sistema judicial. Porque a dotação de meios não tem acompanhado o aumento e complexidade da procura, o que se fez sentir nesta jurisdição com particular intensidade no período da crise que atravessamos, não se tem conseguido tempos satisfatórios de duração dos processos apesar dos esforços, dedicação e competência da generalidade dos juízes que nela servem. Este é seguramente o fator que afeta a credibilidade da justiça administrativa e fiscal.
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A profissão de solicitador é reconhecida por “encurtar distâncias” e simplificar procedimentos. O que acha que poderia ser feito para reforçar a capacidade assumida por este profissional para representar o cidadão junto dos tribunais administrativos?
Neste contexto, foi recentemente ponderado o papel do solicitador nos tribunais administrativos, com contributo desta Ordem no processo legislativo, passando a prever-se a intervenção do solicitador enquanto mandatário nos processos da competência dos Tribunais Administrativos, de acordo com o artigo 11.º, n.º 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, não só em representação dos particulares como também das entidades públicas.
Os Tribunais Administrativos e Fiscais funcionam assentes num sistema informático distinto - o SITAF. Justifica-se a existência de um sistema próprio? Que projetos existem para este sistema? A comunicação entre os diferentes sistemas informáticos é eficiente?
Se a hipótese fosse a de construção ex novo, penso que não se justificaria a existência de um sistema próprio. Mas o SITAF foi criado anteriormente ao CITUS e a migração para um sistema único teria custos financeiros, de tempo e de perturbação do funcionamento dos tribunais para os quais, ao menos neste momento, não vejo justificação nos benefícios esperados. O Ministério da Justiça, em março do ano passado, publicou um documento intitulado “Justiça +Próxima - Plano de Modernização e Tecnologia para uma Justiça mais ágil, transparente e próxima”, no qual são identificadas diversas medidas, a implementar ou recentemente implementadas, que visam a consolidação e modernização do sistema, entre elas, tornar mais fácil e eficiente o trabalho dos mandatários e da secretaria
Não obstante existirem opiniões que defendem o recurso a um único sistema informático, não me parece que, neste momento, os benefícios compensem os custos de um tal empreendimento. E, na realidade, o Ministério da Justiça propõe, no documento “Dossier Justiça-2017” que se proceda a um reforço contínuo dos sistemas informáticos de gestão processual SITAF e CITIUS em estreita colaboração com os seus utilizadores, contemplando novas funcionalidades, com segurança, robustez e eficácia.
Nos processos administrativos há evidentes dificuldades nas execuções das decisões. Quais são as opções a encarar? Considera que seria importante a clarificação do papel do agente de execução nesta matéria?
Com o Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro, já referido, traçou-se o papel interventivo do agente de execução no âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, tendo em vista uma maior eficácia e celeridade. Assim, com esse diploma, passou a prever-se que, nas execuções que sejam da competência dos tribunais administrativos e tributários, os agentes de execução desempenham as suas funções, sem prejuízo das competências próprias dos órgãos da administração tributária (artigos 44.º, n.º 3, 49.º, n.º 3, do ETAF, e 11.º, n.º 6, do CPTA),
papel esse antes assegurado pelo oficial de justiça.
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Um dos problemas registados no funcionamento do nosso sistema judicial e que não afeta apenas a área administrativa e fiscal é o volume da pendência. Na sua perspetiva, quais as soluções mais urgentes que ainda estão por implementar? Falamos de uma situação cuja resolução dependeria apenas do reforço dos meios disponíveis? Considera que seria importante apostar na criação de uma instância dedicada à resolução de casos mais simples? Como encara os mecanismos de resolução alternativa de litígios?
Embora a gravidade da situação não assuma a mesma proporção em todos os tribunais, tem de reconhecer-se que o grande número de processos pendentes na generalidade dos tribunais administrativos e fiscais constitui o problema de mais difícil resolução. Exige do legislador e dos órgãos de gestão medidas especiais e com urgência. No ano de 2016, a quantidade de processos findos superou a de processos entrados, mas ficaram pendentes, em primeira instância, 72.516 processos, o que é uma enormidade para a capacidade de resposta dos tribunais.
A possibilidade de criação de uma instância destinada à resolução de casos mais simples esteve, de algum modo, presente na previsão legal de criação de juízos tributários especializados em função do valor. Suponho, porém, que não seja essa a via que está a ser encarada na preparação das reformas capazes de melhorar a capacidade de resolução dos tribunais administrativos e fiscais que o Ministério da Justiça tem em estudo e anunciará em breve.
Quanto aos meios de resolução alternativa de litígios, designadamente conciliação, mediação e arbitragem, possibilitando uma resolução em alguns casos mais económica e seguramente mais célere dos conflitos, têm de ser encarados favoravelmente, sem preconceitos mas também sem expectativas exageradas. Sempre sem perder de vista que não libertam o Estado do dever de prestar justiça acessível e atempada.
Na sua perspetiva, em Portugal, Economia e Justiça estão mais próximas do momento em que caminharão “lado a lado”? O contexto socioeconómico, nomeadamente o registado nos últimos anos, tem tido reflexos no funcionamento da Justiça? Aliás, podemos pensar a Justiça Portuguesa como uma peça da sociedade adaptável à realidade?
A crise económica que tem assolado o nosso país e a maior eficácia da máquina da Administração Fiscal refletiu-se no aumento da litigiosidade, com o consequente aumento de pendências nos tribunais tributários. Neste contexto, o Memorando de Entendimento assinado a 17 de maio de 2011, entre o Estado Português e o Fundo Monetário Internacional, a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu, consagrou a necessidade, para a sustentabilidade financeira do país, de eliminação de pendências nos tribunais tributários e de aceleração da resolução dos processos judiciais, em especial na área tributária. Uma das medidas então adotada, como é do conhecimento geral, foi a criação de equipas extraordinárias de juízes tributários para movimentarem os processos fiscais de valor superior a um milhão de euros. A jurisdição administrativa e fiscal está no âmago das preocupações da União Europeia quanto à criação em Portugal de um ambiente favorável à economia.
Sente que também a formação dos diversos profissionais ligados ao universo judicial tem vindo a ser adaptada em função dos novos desafios? Como encararia a criação de um ramo de formação comum a todos os profissionais ligados à Justiça?
A formação de magistrados tem tido em conta as novas áreas de conhecimento em Direito, a necessidade de acompanhamento do Direito Comunitário, bem como a evolução informática, nomeadamente os desafios inerentes à tramitação eletrónica dos processos. Essa mesma formação tecnológica tem sido assegurada aos funcionários judiciais, a par de formações específicas em matérias necessárias ao exercício das suas funções.
A ideia de um tronco comum de formação pós-graduada das profissões forenses, que tem concretização noutros sistemas
jurídicos e de que entre nós também surge de quando em vez, não me parece ter viabilidade prática. Antevejo-lhe efeitos positivos globais, mas tem obstáculos de toda a ordem que a afastam do horizonte próximo: de história e cultura profissional, estatutários, de organização das profissões, económicos…
E existe diálogo suficiente entre os diversos profissionais?
A colaboração entre magistrados, funcionários judiciais e mandatários é um princípio estruturante do nosso ordenamento jurídico (artigo 8.º do CPTA, e 7.º do Código de Processo Civil). Uma atitude de colaboração não contende com osdeveres de independência e imparcialidade de uns, nem com a defesa intransigente dos direitos e interesses dos representados que aos outros compete. Haverá certamente aspetos a melhorar, mas não tenho notícia de ambiente de especial crispação nos tribunais administrativos e fiscais. Estarei sempre atento a queixas e sugestões.
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