Reportagem sobre o dia a dia de um Deputado
Um dia com um deputado
Duzentos e trinta deputados, na assembleia da república, dão voz ao país que os elegeu e corpo aos ideais que contrariam amarras e silêncios forçados. Apresentam iniciativas legislativas, questionam o governo, debatem com os colegas da oposição. Até aqui, são poucas as surpresas. Aliás, basta sintonizar a artv para, sem filtros, nem cortes, assistir a parte do que é o dia a dia deste espaço onde há espaço para todos os cidadãos. Mas há mais horas nestes que são os dias na casa da democracia. E, num desses dias, a sollicitare também lá esteve, com márcia passos, deputada do partido social democrata, e com filipe pacheco, deputado do partido socialista.
![]() |
O despertador dita o início de mais um dia. Márcia Passos e Filipe Pacheco preparam-se. Ela compõe o casaco, ele abotoa a camisa. Pegam na pasta, no computador, no telemóvel e seguem caminho. “Cada deputado tem a sua forma de trabalhar. Eu sou madrugadora. Mantenho o ritmo que tinha no meu anterior trabalho, como advogada. Já era a primeira a chegar ao escritório e continuo a ser a primeira a chegar aqui. Chego sempre entre as oito e as oito e quinze. A hora de sair não existe. Saio quando terminar o que tenho para fazer. Os dias são muito intensos”, confessa Márcia Passos. Dias intensos, longos e que, segundo Filipe Pacheco, contrariam a visão que ainda resiste do deputado: “Existe uma visão estereotipada do trabalho do deputado e que só contempla a imagem das reuniões plenárias, onde estão os 230. Ou seja, aquilo que passa na televisão. E não há nada mais errado do que isso”.
Chegam à Assembleia. Entram no edifício, sentam-se na secretária e pegam na agenda. “Uma semana típica de um deputado tem fases bem definidas. Segunda-feira é o dia reservado ao contacto com o eleitorado. Na terça e na quarta de manhã acontecem as reuniões das comissões parlamentares. Na quarta e quinta, à tarde, e na sexta, de manhã, temos reuniões de plenário. Na quinta de manhã ainda temos reuniões de grupos parlamentares. E, depois dos plenários, há sempre lugar para as reuniões das comissões e dos grupos de trabalho”, explica o deputado do Partido Socialista. Márcia Passos complementa: “São dias sempre muito preenchidos. Cada intervenção no plenário implica muito estudo, muito trabalho. Os dois ou três minutos que temos para falar, que é muito pouco, é o resultado de um trabalho árduo, e longo, de gabinete”.
Os ponteiros do relógio continuam a avançar. São 9h30. Tem início a primeira reunião. Tanto Márcia Passos como Filipe Pacheco fazem parte da Comissão da Administração Pública, Modernização Administrativa, Descentralização e Poder Local e da Comissão da Economia, Inovação, Obras Públicas e Habitação. Filipe Pacheco confessa que “este é o local onde é feita uma grande parte do trabalho de um deputado e onde existe maior discussão”. A troca de argumentos entre deputados é intensa. Primeiro o partido do governo, depois a oposição. Alguém levanta a voz e engrossa o tom para conseguir terminar o seu raciocínio. Exige-se articulação de ideias. O dom da oratória pede silêncio, mas as provocações paralelas, em volume de sussurro, fazem parte do jogo político. No fim, pedem-se cedências de todas as partes, em prol do equilíbrio e do país. E, apesar de tudo isto, o tempo não dá tréguas. Pausa. Os deputados dirigem-se à cafetaria. Mas a discussão prolonga-se pelo corredor. “Aqui respiramos política, história, sociedade. Estamos sempre a falar destas coisas. E falamos muito fora das reuniões, das comissões e do plenário. É nos corredores, no bar, na cantina, nos gabinetes... E resolvem-se muitas questões assim. Os nossos debates até podem ser acesos, mas, depois de sairmos, falamos tranquilamente. Aquele é o momento para mostrar, ao país, as ideias do partido e marcar a diferença sobre os caminhos que levam a determinados resultados. Mas, de facto, há muito trabalho que é feito nos bastidores, é nos corredores e nas conversas mais informais que vamos encontrando pontes e soluções”, salienta a deputada do Partido Social Democrata.
![]() |
Termina-se o café. Olha-se para as notícias que enchem o ecrã. Um cidadão, exaltado, afirma, com convicção e revolta: “eles não fazem nada!”. Filipe admite: “A imagem que o cidadão tem é muito negativa. E, sinceramente, acho que está relacionada com uma preguiça coletiva. É muito fácil culpar um deputado pelos problemas da sociedade. Isto dispensa- -nos de fazer um exercício de reflexão sobre quais as causas dos problemas estruturais da sociedade portuguesa”. Márcia acrescenta: “A imagem é de alguém que está distante, de alguém que está fechado na Assembleia a decidir coisas para o país. E é precisamente essa imagem que temos de contrariar. Daí o trabalho de proximidade ser muito importante. Nós temos de sair daqui. Ir até junto das pessoas, às empresas, ao terreno. Temos de perceber como é que as coisas realmente são. E, claro, para se conhecer não basta ler. Temos de falar com as pessoas e de perceber quais são as suas realidades. Criaram-se mitos à volta dos deputados e eu não os entendo. Trabalha-se, realmente, muito!”. Filipe concorda. “Há uma visão distorcida do deputado. Sim, é uma imagem negativa, mas se fizermos um exercício sério, responsável e isento de demagogia ou populismo, constatamos que é uma imagem errada.”
Regressam à reunião, percorrendo os longos corredores da Assembleia da República. Assumem os seus lugares. Recomeça a discussão. De um lado, os deputados do partido do governo, do outro a oposição. De um lado, o “está tudo bem”, do outro, o “está tudo mal”. Será mesmo assim ou será este mais um mito? A deputada do PSD explica o que é, na sua perspetiva, integrar e fazer oposição: “Para mim, é olhar para as medidas que vão sendo implementadas com responsabilidade. Criticar o que está mal e aplaudir quando está bem. Sempre em prol do país e das pessoas. Ser oposição não é dizer sempre que está tudo mal. Fazer oposição passa por, quando está mal, criticarmos e apresentarmos alternativa”. Já o deputado do PS considera que, “do ponto de vista da fiscalização, significa a mesma coisa que ser do partido do governo. E até acho que, por vezes, pode ser mais exigente. Obriga-nos a mais negociação, a mais articulação”. A reunião dá-se por terminada. São 13h00.
Entram no refeitório. Pegam no tabuleiro. Escolhem entre as opções da ementa do dia. Entre carne assada e peixe grelhado, é a normalidade que se serve por aqui. A funcionária recebe o pagamento. 5.80€. Sentam-se. Perguntamos pela lagosta, pelo caviar, em tom de brincadeira. Não temos resposta. E também não temos lagosta, nem caviar. Riem- -se. Avançamos, então, para outra questão: o cidadão quer saber de política? O riso é interrompido e dá lugar à expressão de seriedade que o assunto pede. “Eu acho que há algumas pessoas que não querem saber de política e que acham que isto não serve para nada. Mas também sinto que há muitas pessoas interessadas, nomeadamente, jovens. Há algum descrédito, sem dúvida, mas sempre houve e continuará a haver. Agora, na minha opinião, é uma irresponsabilidade não querer saber de política, do que se passa no nosso país e no mundo. Eu não sei como é possível viver assim. Até porque só não sabe quem não quer. A comunicação entra pela nossa casa. Só quem está completamente distraído - porque quer estar – é que não sabe de nada. Mas sinto que esta é uma minoria e que as pessoas têm interesse”, partilha Márcia Passos. Filipe tem uma outra visão quanto aos jovens: “Eu acho que as pessoas querem saber de política, sim. Mesmo quando acham que não querem saber. Acho, contudo, que as gerações mais velhas, por terem vivido em ditadura, dão mais valor aos mecanismos tradicionais de participação. Isso não acontece com os jovens. E com isto não quero dizer que não se interessam por política ou por assuntos que digam respeito à sua vida. Acho é que não se identificam com o que são os mecanismos tradicionais de participação. Como, por exemplo, as eleições ou a integração num partido político. Considero que os jovens estão afastados dessa realidade. Mas continuam a interessar-se. Basta pensarmos na greve climática estudantil”. Juntam-se os talheres e arrumam-se os tabuleiros. O almoço termina.
![]() |
Dirigimo-nos aos respetivos gabinetes. O plenário só começa às 15h00 e ainda há muito estudo e trabalho de preparação para assegurar. Pelo grande corredor, que liga o antigo e o novo edifício, continua o debate. Desta vez, em torno da responsabilidade do deputado em aproximar o cidadão da política. Na opinião de Filipe e havendo uma fronteira tão ténue entre o que é a política e o que é o dia a dia de qualquer cidadão, “essa responsabilidade existe, claro que sim. Aliás, na semana do deputado, a segunda-feira é o dia reservado para o contacto com o eleitor. Há, desde logo, essa preocupação. Outro exemplo desse trabalho é o parlamento dos jovens”. Márcia acrescenta exemplos e provas de que muito se pode fazer: “Tenho agora um tema muito engraçado que é saber se os centros comerciais devem ou não fechar ao domingo. Neste tipo de tema, que mexe com a vida do cidadão, eu gosto de perguntar a opinião das pessoas. ‘O que acha disto? Qual é a sua opinião?’ Vou colhendo informações e as pessoas percebem que, de alguma forma, estão a participar. Com isto quero dizer que o combate deste desinteresse depende muito de nós. Os deputados têm essa responsabilidade, sem dúvida”.
A campainha toca. É hora de começar o plenário. Márcia e Filipe sentam-se nos seus respetivos lugares. A diversidade de temas em debate espelha a sociedade dos dias que correm. O deputado do PS encara isto como um desafio. “Durante a nossa vida, a nível profissional, tendemos a optar pela especialização numa determinada área e, aqui, no parlamento, é o oposto. Aqui temos de conseguir acompanhar a transversalidade das questões. Por exemplo, a minha área de formação é engenharia, mas, aqui, muitos dos temas que sigo estão relacionados com a modernização administrativa, o poder local, etc. E isso é um desafio. Temos de procurar informação, estudar, estar atualizados… E representar o eleitor”. A deputada do PSD acrescenta: “Desde que fui eleita, faço este trabalho de proximidade para que, aqui, possa ser a voz das pessoas. É importante mostrar aos eleitores que não somos seres inatingíveis. Nós somos eleitos por distrito, mas, assim que o somos, passamos a representar o povo português”.
Falamos com um homem e uma mulher. E, aqui, onde não se ousa negar a diversidade, há igualdade de género? Márcia Passos não perde tempo a responder: “Não sinto qualquer discriminação por ser mulher. Não sinto que o meu papel seja mais difícil por ser mulher. Acho que ainda há um caminho a percorrer e acho que esse caminho vai estar percorrido quando não forem necessárias quotas. Quando tivermos mulheres na política sem ser preciso quotas, estaremos bem”.
![]() |
As horas vão passando. Os pontos da ordem de trabalhos vão sendo percorridos e debatidos. Segue-se uma proposta de lei sobre a pandemia. A deputada não hesita: “A pandemia foi a pior coisa que nos aconteceu. Dizer que é um privilégio fazer parte da história é forte, eu sei. Mas é o que sinto. É a minha forma de encarar as coisas. Nós estamos a fazer parte desta história e da História de um país. Eu vou levar isto para sempre. Na minha primeira legislatura, isto aconteceu”. E foi exatamente durante este período, durante o estado de emergência, que muito se falou na suspensão da democracia. A pergunta é direta: estivemos, de alguma forma, em perigo? Filipe esclarece, com a convicção de quem viveu na pele: “O estado de emergência representou uma suspensão de alguns direitos e liberdades, mas a democracia nunca esteve suspensa”. E Márcia Passos acredita que, pelo medo, muito poderia ter sido diferente: “Nunca esteve suspensa a democracia. Jamais! E aí o Presidente da Assembleia da República teve um papel fundamental. Em determinada altura, instalou- -se o medo. Todos queríamos ir embora. Estar com as nossas famílias. Não sabíamos onde podíamos tocar, com quem podíamos falar. Ninguém sabia de nada, era tudo novo. Estava o mundo confinado, em casa, e nós aqui, na Assembleia. Nunca parámos. E, exatamente por isso, nunca senti que a democracia estivesse suspensa. Antes pelo contrário.”
O dia está próximo do fim. As despedidas fazem-se nos respetivos gabinetes enquanto se guardam os computadores nas pastas. Uma última pergunta: Qual o sentimento que reveste esta missão? A resposta poderia ter acontecido em uníssono: “Responsabilidade”. Segundo Márcia Passos, “de repente, sentimos que muito está nas nossas mãos”. E Filipe Pacheco acrescenta, na certeza de que as palavras não dizem tudo: “É uma honra, um orgulho. Não posso esconder”.
A porta fecha-se. Descemos a escadaria da Assembleia da República. Imponente, mas despida de barreiras. Olhamos para trás uma última vez. Amanhã, a rotina poderá repetir-se. Mas apenas isso: a rotina. Afinal de contas, por aqui passa a vida do país. E tudo de que é feita a vida dos cidadãos. Porque de tudo isto se faz uma democracia que está viva.